Dossier: “Exile albums: popular music, politics and experiences”

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Na atualidade, o exílio tende a ser tratado pelo seu viés resistente e de luta política, mas nunca deixando de lado as experiências e relações sociais que permeiam a condição do exilado. É sob esse ângulo que o exílio é hoje uma temática relativamente bem examinada na literatura acadêmica, com realce para os casos latino-americanos. Os regimes ditatoriais em países do Cone Sul da América na segunda metade do século XX, sobretudo durante as décadas de 1960 e 70 em meio à Guerra Fria, impeliram ao exílio forçado ou voluntário milhares de militantes políticos, intelectuais e artistas de oposição a regimes militares. Dentre os artistas, os intérpretes e compositores vinculados à música popular estão entre aqueles que mais vivenciaram a desterritorialidade, considerando o embate de suas obras e/ou posicionamentos com o poder instituído e o alcance midiático e fonográfico de suas produções num contexto de grande agitação política e sociocultural.


No Brasil, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque são casos emblemáticos – mas não os únicos, como este dossiê demonstra – de músicos exilados durante o período da ditadura militar (1964-1985). Emblemáticos, pois, além de artistas unanimemente reconhecidos, o modo como cada qual lidou com esse processo e as diferentes condições que o envolveram atestam o quão plural e, a um só tempo, única é a experiência do exílio. Este pode ser vivenciado de distintas formas a depender das circunstâncias sob as quais se deu a partida do país de origem e de como se dá – ou não – a adaptação no país de acolhida. Sua geografia, cultura, costumes, idioma e outras tantas variáveis como a própria personalidade do exilado podem abrandar, ou não, os efeitos do desterro.


Arautos da contracultura e, por isso, agitadores culturais licenciosos aos olhos do regime militar, os tropicalistas Gil e Caetano passaram por várias etapas até à expulsão do Brasil em 1969. Foram encarcerados, depois vigiados em prisão domiciliar e então “convidados” pelos militares a deixarem o país. Antes disso, foram autorizados a realizar um show de despedida para angariar recursos e custear a própria partida forçada. Os dois anos e meio de exílio em Londres, encarados por cada um à sua maneira e permeados por adversidades e superações, renderam os LPs Gilberto Gil e Caetano Veloso, ambos de 1971. Caetano ainda gravou Transa, lançado no Brasil, em 1972, concomitantemente ao seu retorno definitivo ao país. Já Chico Buarque, expoente da canção engajada e um dos compositores mais censurados pela ditadura no Brasil, só compreendeu sua condição de exilado quando já estava no exterior. Em viagem a Roma, em 1969, foi alertado para que não regressasse, pois a repressão estava em seu encalço. Morou na Itália durante quase um ano sem oportunidades significativas de trabalho. Concebido nesse período, seu LP Chico Buarque de Hollanda n.º 4 foi lançado no Brasil, em 1970, quando o músico volta à terra natal. 


Esses e outros “álbuns do exílio” de ícones da música brasileira, analisados com detalhes em outras ocasiões pelos organizadores deste dossiê, motivaram a presente proposta visando a estabelecer diálogos com demais pesquisadores do tema na América Latina e no Caribe. Tanto a questão do exílio quanto o vasto campo de estudos sobre a música popular acumulam, hoje em dia, inúmeras contribuições e marcos teóricos e metodológicos. Concebê-los, no entanto, sob uma perspectiva interdisciplinar consiste ainda num grande desafio, especialmente no que se refere às produções fonográficas. Tal desafio é enfrentado sob diferentes abordagens nos quatro artigos reunidos no dossiê, possibilitando aos leitores conhecer trajetórias e experiências de músicos cujos exílios, sob distintas circunstâncias políticas e sociais, impactaram e/ou condicionaram a elaboração de álbuns e composições.


Abrindo o dossiê, Igor Lemos traz à tona a questão do exílio cubano, assunto ainda pouco explorado por pesquisadores brasileiros, como é o seu caso, e por pesquisadores latino-americanos de modo geral, mais centrados nos contextos de ditaduras militares no Cone Sul. Em “Exílio, cubanidades inventadas e anticastrismo em Gloria Estefan: apontamentos sobre o álbum Mi tierra”, o autor desenvolve análises originais sobre um álbum de uma cantora pop de origem cubana, radicada com a família nos Estados Unidos desde a infância e não raras vezes estigmatizada por seus posicionamentos políticos à direita. Para Lemos, Mi tierra (1993) procurou reforçar certa identidade cubana projetada por comunidades exiladas. Isso, em larga medida, devido a um sentimento de nostalgia articulado nas canções e nas sonoridades do álbum como representação de uma Cuba prérevolucionária, num momento em que a ilha, naqueles anos de 1990, vivia o conturbado “período especial”. Conforme Lemos, Mi tierra consagrou Gloria Estefan como uma das porta-vozes dessas comunidades exiladas, nostálgicas de uma Cuba idealizada e afinadas com o discurso anticastrista.


Imilka Fernández segue com reflexões acerca do exílio de músicos cubanos, somando-se ao crescente interesse sobre o tema. “Imaginarios e hibridaciones en Paquito D’Rivera”, seu artigo destaca a figura do reconhecido e premiado saxofonista e clarinetista, outro que, além de pouco pesquisado, converteu-se, citando a autora, “en uno de los más activos críticos de la Revolución Cubana […] y desde entonces su música ha sido silenciada y omitida del panorama musical cubano dentro de la isla hasta el presente”. Como resume o título, Fernández discute os processos de hibridação no repertório de D’Rivera a partir do exílio nos Estados Unidos nos anos de 1980, quando o instrumentista inevitavelmente assimila novos horizontes musicais que passam a caracterizar sua linguagem, via de regra associada ao rótulo de “jazz latino”. A análise de duas de suas composições (Panamericana suite e The elephant and the clown) sustenta o argumento de que tais processos e a articulação de imaginários em torno deles são orientados pela música popular tradicional cubana e latino-americana, pela música popular urbana estadunidense e também pela música acadêmica de tradição escrita.


De Aldo Luiz Leoni, Fernando Tavares e Diósnio Machado Neto, o terceiro artigo – “‘De outras terras e outras línguas te acordar’: Taiguara, a música como campo de batalha” – ilumina aspectos biográficos de Taiguara em relação aos seus álbuns e canções e à censura política que recaiu sobre esse músico brasileiro de origem uruguaia, outro nome ainda pouco estudado e conhecido. A partir da ideia de “exílio artístico”, os autores elucidam como a ditadura militar no Brasil tornou praticamente impossível que Taiguara trabalhasse como músico no país. Exploram fatos como a censura que ele incrivelmente também sofreu já vivendo na Inglaterra e direcionam parte de suas análises para o álbum Imyra, Tayra, Ipy – Taiguara (1976), lançado pela gravadora EMI-Odeon no Brasil, mas rapidamente retirado de circulação pela censura. Buscam costurar o contexto político com a vida e a obra desse artista que acabou se afastando da carreira musical e do Brasil rumo à Tanzânia, onde continuaria se politizando como jornalista e de onde só retornaria, com um novo álbum, na década de 1980, período marcado pela redemocratização brasileira.


à Tanzânia, onde continuaria se politizando como jornalista e de onde só retornaria, com um novo álbum, na década de 1980, período marcado pela redemocratização brasileira. No quarto e derradeiro artigo, “‘Porque mañana se abrirán las alamedas’ – la experiencia exiliar de los músicos chilenos en México...”, Candelaria María Luque situa o México no mapa dos países de acolhida para músicos e demais chilenos exilados pósgolpe militar de 1973, haja vista a maioria das pesquisas sobre os exílios chilenos no contexto ditatorial ser direcionada para experiências vividas na Europa. A autora mobiliza fontes orais, documentos escritos, imagens e álbuns para demonstrar e analisar como se efetivou, no México, redes de apoio e solidariedade e um espaço dinâmico de resistência político-musical para artistas vinculados ao movimento da Nova Canção Chilena, destacando Ángel Parra e grupo Illapu, personagens centrais de suas análises.


Nosso dossiê também conta com um texto-testemunho de José Luis Vergara: “Concierto de Quilapayún en el Palau Blaugrana de Barcelona, organizado por Agermanament el 20 y 21 septiembre de 1974”. Através de suas memórias, acompanhamos as primeiras apresentações do Quilapayún, outro importante grupo musical chileno, na cidade de Barcelona, numa Espanha ainda sob a ditadura franquista. O autor foi coordenador dessas apresentações quando militava numa agremiação católica de esquerda chamada Agermanament. Em diálogo com o artigo precedente, chama a atenção para a potência da música no que concerne à ativação de redes de solidariedade para com chilenos exilados.


Para nós, organizadores, é imensamente satisfatório ter reunido e apresentar esse material como resultado do dossiê, cujos artigos e relato memorialístico entrecruzam exílios, músicos e produções fonográficas em itinerários diversos envolvendo países como Cuba, Estados Unidos, Brasil, Chile, México, Espanha, Inglaterra, Tanzânia e outros mais. Esperamos que os leitores se sintam instigados e que a iniciativa concretizada possa auxiliar pesquisadores dentro e fora da América Latina e incentivar novos estudos sobre essa temática de caráter interdisciplinar. Agradecemos sinceramente às autoras e autores que nos confiaram seus textos, aos pareceristas convidados e ao excelente trabalho editorial da Contrapulso que prontamente acolheu nossa proposta. Boa leitura!

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Article Details

Author Biographies

Sheyla Castro Diniz

Universidade de São Paulo, USP
sheyladiniz@usp.br

Márcia Fráguas

Doutoranda Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ
mcfraguas@gmail.com

Rodrigo Pezzonia

Doutor em História Social, Universidade de São Paulo, USP
pezzonia@gmail.com

How to Cite
Castro Diniz, S., Fráguas, M., & Pezzonia, R. (2024). Dossier: “Exile albums: popular music, politics and experiences”. Contrapulso - Journal of Latin American Popular Music Studies, 6(1), 4-6. https://doi.org/10.53689/cp.v6i1.247
Section
Dossier: “Exile albums: popular music, politics and experiences”